Pesadelos

Piloto Automatico

September 05, 2024 Willian Camargo

quando foi a ultima vez que você pensou de fato?

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"Piloto automatico" por willian camargo.

Eu sempre odiei meu trabalho. Passo os dias numa baia sufocante, cercado por paredes de plástico barato e vozes cansadas que ecoam pelos corredores cinzentos da empresa. Faz tempo que perdi a conta das horas que desperdicei ali, olhando para a tela de um computador, respondendo e-mails que nunca importam. Mas o trabalho paga as contas, e é isso que dizem, não é? A única coisa que me mantém em pé.

Toda semana, quando o salário caía na conta, era como se eu fosse temporariamente libertado. Corria para comprar algo novo — uma TV maior, um relógio de marca, o último modelo de celular. Cada nova compra trazia uma euforia passageira, um curto-circuito no tédio monótono que definia meus dias. Por um breve momento, a ilusão de controle me envolvia, como se, ao adquirir algo, eu estivesse tomando as rédeas da minha própria vida. Mas sempre passava. O vazio voltava. E eu precisava de mais.

Com o tempo, percebi que isso não era só comigo. Todos ao meu redor faziam o mesmo. Eles viviam para o próximo bônus, para o próximo desconto, para o próximo upgrade. Não importava o quão caro, não importava o quão inútil. Todos nós estávamos imersos nesse ciclo. Um ciclo que eu não conseguia mais quebrar.

No entanto, as coisas mudaram há alguns meses. Comecei a me sentir... deslocado. Não havia motivo aparente, mas tudo parecia errado. Mesmo nas pequenas compras, aquelas que antes me davam prazer, não sentia mais nada. Não era só o vazio de sempre; era como se algo dentro de mim tivesse morrido. Como se, de alguma forma, eu tivesse cruzado uma linha invisível e irreversível. Mas continuei. Tinha que continuar. É o que fazem, certo? Você continua.

As semanas seguintes foram piores. O trabalho parecia mais insuportável do que nunca, mas era mais do que isso. Eu olhava ao meu redor e via todos aqueles rostos... os mesmos rostos, todos os dias. Eles se moviam com precisão mecânica, como se fossem autômatos em uma linha de montagem, todos focados em seus monitores, todos cumprindo suas funções sem questionar. Tão cansados, tão drenados, mas nunca parando.

E foi aí que a verdade começou a se insinuar.

Um dia, durante o expediente, enquanto digitava mecanicamente, percebi algo que me fez congelar. Meus dedos se moviam por conta própria. Eu não estava pensando no que estava fazendo — nem podia. Era como se meu corpo soubesse o que fazer e continuasse automaticamente. Naquele momento, uma pergunta surgiu: Há quanto tempo eu não penso?

Comecei a observar com mais atenção. Todos ao meu redor também pareciam agir no piloto automático. Não era uma metáfora, era algo literal. Meus colegas de trabalho — aqueles que eu via todos os dias, que compartilhavam a mesma rotina sufocante — estavam ali fisicamente, mas seus olhos estavam vazios. Não era só cansaço, era algo além disso. Era como se estivessem ausentes.

Passei a prestar atenção em mim mesmo. Havia momentos em que eu não conseguia lembrar o que tinha feito minutos antes. Eu fazia uma tarefa, completava outra, mas a lembrança desaparecia logo em seguida. Os dias se tornavam borrões indistintos. Comecei a perder a noção do tempo. Uma semana? Um mês? Tudo parecia se fundir. E as compras? Não lembro a última coisa que comprei.

O ápice aconteceu em uma manhã qualquer, quando olhei para o espelho no banheiro da empresa. Meus olhos pareciam diferentes, mais fundos, mais escuros. Mas isso não foi o mais assustador. O que me aterrorizou foi a sensação de que... eu não estava mais ali. Não no sentido figurado. Literalmente, eu não estava ali.

O reflexo no espelho não reagia. Eu levantei a mão, e o reflexo a acompanhou, mas de uma maneira... tardia. Como se algo estivesse atrasado, uma fratura na sincronia do real. Me afastei, mas a sensação permaneceu. Cada passo que eu dava, cada movimento que fazia, parecia mais desconectado da minha própria vontade. Eu estava sendo conduzido.

Passei o dia em pânico. Tentei agir normalmente, mas comecei a perceber que, na verdade, não sabia mais como parar. Meu corpo se movia, executava as tarefas, respondia e-mails, interagia com colegas... e tudo isso sem que eu precisasse pensar. Não era mais uma questão de escolha, de rotina. Era como se eu tivesse sido programado para isso.

Naquela noite, ao chegar em casa, me joguei na cama, tentando desesperadamente encontrar algum resquício de humanidade dentro de mim. Mas a verdade me atingiu com brutalidade. Eu não estava mais ali. Nunca estive.

O horror da realização foi devastador. Tudo o que eu pensava ser — minhas vontades, meus desejos, até mesmo minhas frustrações com o trabalho — não eram meus. Eu era apenas uma engrenagem. A sensação de ser consumido não vinha das compras ou do trabalho... vinha da constatação de que minha identidade, minha própria existência, havia sido completamente usurpada.

E o pior? Não havia mais ninguém para culpar. Não havia uma grande corporação maquiavélica, um sistema invisível que me manipulava. O vazio, a falta de propósito, a alienação... tudo isso eu mesmo havia permitido. Eu tinha me vendido. E agora, enquanto escrevo essas palavras, sei que, de alguma forma, estou desaparecendo. Fui devorado, aos poucos, pelo ciclo de trabalho e consumo. E o pior de tudo: não houve um único momento em que me dei conta.